07 dezembro 2008

Ceia de Natal

No centro de todo aquele calor humano, familiar, as rabanadas, filhoses e sonhos ornamentam a grande e pesada mesa da sala. Para trás ficara já o bacalhau e as batatas, bem regadas por perto de 2 horas de conversa.
Olhando à volta, vejo os mais novos, impacientes, esperando a hora de descobrir o que contêm aqueles embrulhos coloridos sob o pinheiro alegremente decorado com bolas e fitas. Vejo, na sua cadeira de balanço, a avó, a quem os anos pesam cada vez mais, e o tio que, como de costume se mostra indiferente a toda a festa.
É cedo. Reunimo-nos em volta da velha mesa quadrada e iniciamos um longo e fastidioso jogo de cartas. Os cálices de Porto sucedem-se ao ritmo pautado dos charutos e cigarrilhas que, um pouco por toda a sala, espalham o característico odor.
O ambiente torna-se pesado, quase irrespirável. Mas, ao soar das 12 badaladas, tudo se transforma: os copos são pousados, os charutos morrem, sozinhos nas mesas, e todos nos sentimos tomados de uma alegria contagiante. Inicia-se a distribuição de ofertas, a maior parte delas singelas, mas todas especiais. Reina a boa disposição e os beijos e abraços multiplicam-se sucedendo-se às exclamações de, por vezes fingida, surpresa.
Alguns, sempre os mesmos, saem para cumprir a tradição da missa do galo. No regresso há tempo ainda para mais um copo de licor ou uma última fatia dourada antes do “até amanhã” que nos reunirá novamente em torno da mesma mesa, para saborear o mesmo bacalhau e as mesmas rabanadas.
O Natal é, desde sempre, uma alegre monotonia. Talvez por isso, ou porque sabemos que o próximo será idêntico, ele é mágico!

Dez 1996

05 outubro 2008

Évora


















Olho à volta do alto de S. Bento, de um lado a planície silenciosamente deserta cortada aqui e ali por estreitas faixas negras de som, do outro a cidade, Évora, autoritariamente dominada pela imponente Sé. Olho e recordo: começo no Rossio, passo pela pensão do Machado que não é já mais do que uma longínqua recordação dos mais antigos e desemboco no Giraldo, na Praça. Detenho-me por momentos no centro, respiro a lembrança de tempos antigos e continuo por ruas estreitas, caladas, nuas, assustadoramente belas. Aproximo-me da Sé mas logo o Templo me chama, Diana, contemplo-te através de séculos de guerras, de batalhas, séculos de amor. Contemplo também a planicie em redor, uma doce melancolia apodera-se de mim e parto à procura do liceu, dos seus claustros de memórias esquecidas, da sua fonte de águas outrora puras. Finalmente, sem destino, vagueio, por entre jardins floridos e mórbidas capelas.
Évora, que saudades na hora da partida, quanta angústia no momento do regresso. Évora.

1996

06 dezembro 2007

Observar o mar num dia tempestuoso de inverno


A noite foi de chuva e vento, o dia nasceu escuro, húmido e frio. Enquanto as gentes procuram o aconchego de um qualquer templo comercial nós rumamos à beira-mar. No esburacado parque de estacionamento de terra, improvisado em frente à praia, não se aglomeram centenas de carros, motos, bicicletas e respectivos ocupantes. Está vazio de civilização ocupado apenas por um ou dois cães vadios que, com curiosidade, se aproximam ziguezagueando entre as poças. Ao abrir a porta da viatura sentimos desde logo um forte vento, pequenas agulhas quase, a bater na cara. Saímos. Fechamos melhor, o mais possível, o casaco e, de mãos nos bolsos, aproximamo-nos do mar. Não muito, apenas uns passos até uma pequena pedra ou aos primeiros metros de areia. E lá ficamos. Olhando as ondas, uma após outra, na sua forte investida, escutando o ronco do mar enquanto se desfaz, escuro, desordenado e furioso, nas rochas e os gritos aflitivos das gaivotas que não se aventuram a voar para longe. Está frio, sentimo-lo nos pés, nas calças que, húmidas colam às pernas, e no nariz que dá o caracteristico sinal. Está frio e cinzento mas já não chove e o sol ameaça romper. Um, dois,..., são poucos e momentaneos os raios que surjem por entre as nuvens. São poucos e fracos mas suficientes para conferir ao céu e ao mar uma luz inigualavel, um brilho irreal que aquece o dia e conforta a alma.

02 outubro 2006

O jornal de sábado


Normalmente é ao sábado mas por vezes acontece ao domingo. A meio da manhã vamos à rua tomar calmamente o pequeno-almoço à pastelaria do bairro e, no regresso compramos o jornal. Não o de todos os dias que lemos meio a correr na banca do costume, no metro ou na Internet e do qual sorvemos apenas as “gordas” mas o de sábado. O de sábado lê-se por inteiro e sempre no papel. Lêem-se as secções que habitualmente são desprezadas, lêem-se comentários de cronistas de quem se gosta e mesmo os de quem não suportamos, lê-se a revista, com as suas histórias mais ou menos sensacionalistas e as reportagens e entrevistas, resquícios de um jornalismo sério e de qualidade, e consulta-se o guia da semana para conhecer sugestões de restaurantes, de filmes e teatros em cartaz ou passeios dominicais. Lê-se tudo não escapando sequer a publicidade a grandes cadeias de supermercados e electrodomésticos ou empresas de telecomunicações. Lê-se tudo requisitando espaço à mesa da sala e tempo ao almoço que só se iniciará após a leitura estar completa. Por vezes, quando a refeição já terminou e a tarde convida ao ócio, volta-se a abrir o jornal e os seus suplementos para, em frente à televisão, junto à aparelhagem ou na varanda, nos dedicarmos ao que, numa primeira leitura se nos escapou. O prazer do jornal de sábado não é condicionado pelo que aconteceu no dia ou semana anterior mas tão só pelo facto de existir tempo e disposição para nele mergulharmos.

16 setembro 2006

o primeiro golo numa imperial bem tirada


Começa muito antes disso. Num final de tarde, à saida do trabalho, das aulas ou noutra qualquer situação dá aquela vontade irresistivel de uma cerveja gelada. Desde logo começa o ritual. O local não é importante. Uma esplanada, uma qualquer tasca ou marisqueira, o café do amigo ou o bingo do clube. É ao gosto e costume de cada um. Pede-se: é uma imperial, se faz favor! E, enquanto o empregado se volta para a tirar, rodando, com arte, o copo que retirou do congelador, vamos antecipando o momento em que vai ser colocada à nossa frente, à nossa mercê. Vemos o gás a escapar-se furiosamente desde o fundo provocando um remoinho doirado, poisamos a mão no copo e, sentindo a sua frescura, levamo-lo à boca. O sabor é intenso, refrescante e, quase sem darmos por isso, fechamos por um segundo os olhos tentando prolongar o momento. Afastamos então o copo e, enquanto o observamos com ar aprovador, soltamos um pequeno estalo com a lingua seguido do aahhhh final. Poderiamos, nesse dia beber mais uma, duas ou mesmo todo o stock do estabelecimento mas uma coisa é mais do que certa: nenhum outro golo será, sequer, comparável ao primeiro.

24 agosto 2006

um livro e um cálice de porto


O melhor fim para a tarde de chuva passada à lareira. Jantou-se, sem sair do lugar, algo simples e de confecção fácil pois, contagiados pela preguiça da tarde não houve forças para mais. Retira-se o volume ao televisor, deixando o apresentador do concurso familiar num fora de tempo filme mudo e avança-se para a garrafeira, indecisos. Hum, gin? Wiskey? Martini? Porto? Porto! Enche-se generosamente o cálice, pega-se no livro do momento e retoma-se o lugar. O livro é aberto mas, durante os próximos minutos, repousará ainda nos joelhos enquanto se observa os reflexos de mel provocados pelo fogo no vinho e se deberica os primeiros golos. Então sim, podemos embrenhar-nos na história deixando-nos embalar pelo ambiente ameno e pela candura do porto. Seremos, de tempos a tempos, despertos pela necessidade de remexer nas brasas dando-lhes nova vida até que já nada reste do livro, do porto, ou da noite.

23 agosto 2006

uma tarde à lareira


Lá fora a chuva fustiga as janelas e o vento assobia nas árvores. São apenas 15 horas e as nuvens, escuras de tão carregadas, não permitem que mais que uma fraca luminosidade entre na sala. Acendem-se as luzes, dispõe-se calmamente a lenha na lareira e ateia-se o lume. É já com a madeira a crepitar que puxamos para mais perto, quase para dentro, o cadeirão e deixamo-nos ficar, dormitando, a aquecer o corpo e a alma enquanto o olhar vai vagueando entre as gotas que escorrem pelos vidros, o filme sem interesse que passa na televisão e o fogo que, como que entabulando conosco uma suave conversação, estala mesmo ali ao lado. É nesta deliciosa inutilidade que a tarde preguiçosamente se vai estendendo e deixando ver, por entre uma fugaz aberta, a lua que, sem que nos dessemos conta, já vai alta.